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domingo, outubro 28, 2007

Pusemos tantos sonhos em seu nome!

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Julek Heller
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Vimos o mundo aceso nos seus olhos,
E por os ter olhado nós ficámos
Penetrados de força e de destino.
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Ele deu carne àquilo que sonhámos,
E a nossa vida abriu-se, iluminada
Pelas imagens de oiro que ele vira,
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Veio dizer-nos qual a nossa raça,
Anunciou-nos a pátria nunca vista,
E a sua perfeição era o sinal
De que as coisas sonhadas existiam.
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Vimo-lo voltar das multidões
Com o olhar azulado de visões
Como se tivesse ido sempre só.
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Tinha a face voltada para a luz,
Intacto caminhava entre os horrores,
Interior à alma como um conto.
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E ei-lo caído à beira do caminho,
Ele - o que partira com mais força
Ele - o que partira pra mais longe.
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Porque o ergueste assim como um sinal?
Pusemos tantos sonhos em seu nome!
Como iremos além da encruzilhada
Onde os seus olhos de astro se quebraram?
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Sophia de Mello Breyner

sábado, outubro 27, 2007

ninguém te cala pensamento...

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Salvador Dali
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Quem marca uma fronteira àquela estrela
A asa que é a sua sombra onde mora?
Sob as mordaças calam-se as palavras
Mas ninguém te cala pensamento.
.Quem manda à semente não germines
Ao fruto dela que o não seja?
Amarram-se os pulsos com algemas
Mas ninguém te amarra pensamento.
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Quem impõe ao dia que não nasça
Ao sol que é sua fonte que não brilhe?
Fecham-se as janelas com tapumes
Mas ninguém te cega pensamento
.Quem diz ao amor é impossível
À lembrança que é seu laço que o não seja?
Separam-se os amantes na distância
Ninguém te roubará meu pensamento.
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Joaquim Namorado

quarta-feira, outubro 24, 2007

desperdício

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?????
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Passamos a maior parte do tempo
na vã tentativa de recolher
os despojos do que fomos
mas nem juntamos os cacos do presente
nem resgatamos o soluço da véspera.

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.Newton de Lucca

sábado, outubro 20, 2007

Em que espelho ficou perdida?

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GeoffRoy Demarquet
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Eu não tinha este rosto de hoje,
assim calmo, assim triste, assim magro,
nem estes olhos tão vazios,
nem o lábio amargo.
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Eu não tinha estas mãos sem força,
tão paradas e frias e mortas;
eu não tinha este coração
que nem se mostra.
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Eu não dei por esta mudança,
tão simples, tão certa, tão fácil:
- Em que espelho ficou perdida a minha face?
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Cecília Meireles

terça-feira, outubro 16, 2007

amor semeia a revolta (erguem-se muros)

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Remedios Varo
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Erguem-se muros em volta
do corpo quando nos damos
amor semeia a revolta
que nesse instante calamos
.Semeia a revolta e o dia
cobrir-se-á de navios (bis)
há que fazer-nos ao mar
antes que sequem os rios
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Secos os rios a noite
tem os caminhos fechados (bis)
Há que fazer-nos ao mar
ou ficaremos cercados
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Amor semeia a revolta
antes que sequem os rios...
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Intérprete: Adriano Correia de Oliveira
Música: Adriano Correia de Oliveira

Letra: António Ferreira Guedes

canção com lágrimas


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Odilon Redon
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Eu canto para ti um mês de giestas
Um mês de morte e crescimento ó meu amigo
Como um cristal partindo-se plangente
No fundo da memória perturbada
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Eu canto para ti um mês onde começa a mágoa
E um coração poisado sobre a tua ausência
Eu canto um mês com lágrimas e sol o grave mês
Em que os mortos amados batem à porta do poema
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Porque tu me disseste quem me dera em Lisboa
Quem me dera em Maio depois morreste
Com Lisboa tão longe ó meu irmão tão breve
Que nunca mais acenderás no meu o teu cigarro
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Eu canto para ti Lisboa à tua espera
Teu nome escrito com ternura sobre as águas
E o teu retrato em cada rua onde não passas
Trazendo no sorriso a flor do mês de Maio
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Porque tu me disseste quem me dera em Maio
Porque te vi morrer eu canto para ti
Lisboa e o sol Lisboa com lágrimas
Lisboa a tua espera ó meu irmão tão breve
Eu canto para ti Lisboa à tua espera...
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Intérprete: Adriano Correia de Oliveira
Música: José Niza
Letra: Manuel Alegre

domingo, outubro 14, 2007

o infinito afinal fica aqui ao pé da gente...


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Joan Miró
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Duas linhas paralelas
muito paralelamente
iam passando entre estrelas
fazendo o que estava escrito:
caminhando eternamente
de infinito a infinito.
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Seguiam-se passo a passo
exactas e sempre a par
pois só num ponto do espaço
que ninguém sabe onde é
se podiam encontrar
falar e tomar café.
.Mas farta de andar sozinha
uma delas certo dia
voltou-se para a outra linha
sorriu-lhe e disse-lhe assim:
«Deixa lá a geometria
e anda aqui para o pé de mim...»
.Diz a outra: « Nem pensar!
Mas que falta de respeito!
se quisermos lá chegar
temos de ir devagarinho
andando sempre a direito
cada qual no seu caminho!»
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Não se dando por achada
fica na sua a primeira
e sorrindo amalandrada
pela calada, sem um grito
deita a mãozinha matreira
puxa para si o infinito.
.E com ele ali à frente
as duas a murmurar
olharam-se docemente
e sem fazerem perguntas
puseram-se a namorar
seguiram as duas juntas.
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Assim nestas poucas linhas
fica uma estória banal
com linhas e entrelinhas,
e uma moral convergente:
o infinito afinal
fica aqui ao pé da gente.
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.José Fanha

terça-feira, outubro 09, 2007

Há sempre um sobrenome...

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Shwidkiy Andrey
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Porém, é impossível descobrir o
nome inteiro das coisas.
Há sempre um sobrenome,
três ou quatro designações de família,
e várias aproximações que nos escapam.
Uma coisa simples como a pedra
poderá ter tantos nomes incertos
como a água. E é só um exemplo.
Daí a dificuldade para entender
um único dia.
É impossível saber o nome inteiro da vida.
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Gonçalo M. Tavares