Quando é que o cativeiro Acabará em mim? E, próprio dianteiro, Avançarei enfim? . Quando é que me desato Dos laços que me dei? Quando serei um facto? Quando é que me serei? . Quando ao virar da esquina De qualquer dia meu, Me acharei alma digna Da alma que Deus me deu? . Quando é que será quando? Não sei. E até então Viverei perguntando: Perguntarei em vão. .. Fernando Pessoa
... Remedios Varo A minha sombra sou eu, ela não me segue, eu estou na minha sombra e não vou em mim. Sombra de mim que recebo a luz, sombra atrelada ao que eu nascia distância imutável de minha sombra a mim toco-me e não me atinjo, só sei do que seria se de minha sombra chegasse a mim. Passa-se tudo em seguir-me e finjo que sou eu que sigo, finjo que sou eu que vou e não que me persigo. Faço por confundir a minha sombra comigo: estou sempre às portas da vida, sempre lá, sempre às portas de mim! Almada Negreiros
... ABrito - mirrored heart (fotografia) A porta da verdade estava aberta, mas só deixava passar meia pessoa de cada vez. Assim não era possível atingir toda a verdade, porque a meia pessoa que entrava só trazia o perfil de meia verdade. E sua segunda metade voltava igualmente com meio perfil. E os meios perfis não coincidiam. Arrebentaram a porta. Derrubaram a porta. Chegaram ao lugar luminoso onde a verdade esplendia seus fogos. Era dividida em metades diferentes uma da outra. Chegou-se a discutir qual a metade mais bela. Nenhuma das duas era totalmente bela. E carecia optar. Cada um optou conforme seu capricho, sua ilusão, sua miopia. Carlos Drummond de Andrade