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segunda-feira, outubro 30, 2006

Como é possível perder-te sem nunca te ter achado...

....

Shwidkiy Andrey


Poema Sobre a Recusa
Como é possível perder-te

sem nunca te ter achado
nem na polpa dos meus

dedos
se ter formado o afago
sem termos sido a cidade

nem termos rasgado pedras
sem descobrirmos a cor

nem o interior da erva

Como é possível perder-te

sem nunca te ter achado
minha raiva

de ternura
meu ódio de conhecer-te
minha alegria profunda


Maria Teresa Horta

domingo, outubro 29, 2006

e sonho que me estás acariciando...


Maria Amaral - rêve dùne caresse



Danças...
teus gestos são
carícias mansas,
a tua dança é um tateio vago,
é o próprio tato dedilhando
as melodias do afago...
Danças,
e fico,
a quando e quando,
presa de gozo singular,
e sonho que me estás acariciando,
e sinto em todo o corpo o teu gesto passar.


Gilka Machado

sábado, outubro 28, 2006

Flor de água


Maria Amaral - la vague


Ignoro o que seja a flor da água
mas conheço o seu aroma:
depois das primeiras chuvas
sobe ao terraço,

entra nu pela varanda,
o corpo inda molhado
procura o nosso corpo e começa a tremer:
então é como se na sua boca

um resto de imortalidade
nos fosse dado a beber,
e toda a música da terra,
toda a música do céu fosse nossa,

até ao fim do mundo,
até amanhecer.



Eugénio de Andrade

sexta-feira, outubro 27, 2006

Só sei amar assim...


Barbara Coleman



Quisera desabar sobre ti

como chuva forte.

Só sei amar assim -
e é assim que te lavro, deserto.



Olga Savary

quarta-feira, outubro 25, 2006

Desperta-me de noite o teu desejo

...
Gustav Klimt


Desperta-me de noite
o teu desejo
na vaga dos teus dedos
com que vergas
o sono em que me deito

É rede a tua língua
em sua teia
é vício as palavras
com que falas

E queres-me de amor
e dás-me o tempo

a trégua
a entrega
o disfarce


E lembras os meus ombros
docemente
na dobra do lençol que desfazes

Despertas-me de noite
com o teu corpo

tiras-me do sono
onde resvalo

E eu pouco a pouco
vou repelindo a noite
e tu dentro de mim
vais descobrindo vales.
.

Maria Teresa Horta
.

segunda-feira, outubro 23, 2006

charutos, chá das cinco e saudade

...

Julius Stewrt


a sala da minha avó guarda encantos e memórias
conservados em saudade
sons de sorrisos velados, perfumes das quintas feiras
- às cinco em ponto era o chá -
vinham as tias solteiras e um senhor de panamá
que falava em liberdade....

bem ocultas sob o pó dormem antigas histórias
dois sofás de velho couro
jornais do tempo da guerra
da fome e da incerteza
um vaso apenas com terra
junto ao isqueiro de ouro
os cachimbos do avô
dormem soltos sobre a mesa recoberta de tricot

pelas paredes espalhados
quadros a óleo suspendem
parentes desconhecidos
de largo bigode hostil
comendadores no Brasil ... era o tempo de emigrar...
e ainda paira no ar
o odor adocicado dos charutos apagados

a secretária de alçado
postada a um canto, sombria
sob o relógio parado,
ainda hoje vigia
os papéis e o passado

fecho a porta de mansinho, deixo as cortinas cerradas

no silêncio que transborda, de saudade, de carinho,
ouço o relógio sem corda
dar as cinco badaladas...
e depois... chorar baixinho


J. M. Restivo Braz
in:
http://pwp.netcabo.pt/JMRB/default.htm

segunda-feira, outubro 16, 2006

Menina dos olhos de Água


Pierre-Auguste Renoir



Menina em teu peito sinto o Tejo
e vontades marinheiras de aproar
menina em teus lábios sinto fontes
de água doce que corre sem parar

menina em teus olhos vejo espelhos
e em teus cabelos nuvens de encantar
e em teu corpo inteiro sinto o feno
rijo e tenro que nem sei explicar

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar

aprendi nos "Esteiros" com Soeiro
aprendi na "Fanga" com Redol
tenho no rio grande o mundo inteiro
e sinto o mundo inteiro no teu colo

aprendi a amar a madrugada
que desponta em mim quando sorris
és um rio cheio de água levada
e dás rumo à fragata que escolhi

se houver alguém que não goste
não gaste - deixe ficar...
que eu só por mim quero-te tanto
que não vai haver menina p'ra sobrar



música e letra de Pedro Barroso
in álbum "Cantos da borda d'água" 1985

domingo, outubro 15, 2006

Nesta certeza que não vens

...

Henry Asencio


Da tua voz
o corpo
o tempo já vencido

os dedos que me
vogam
nos cabelos

e os lábios que me
roçam pela boca
nesta mansa tontura
em nunca tê-los...

Meu amor
que quartos na memória
não ocupamos nós
se não partimos...

Mas porque assim te invento
e já te troco as horas
vou passando dos teus braços
que não sei
para o vácuo em que me deixas
se demoras
nesta mansa certeza que não vens.



Maria Teresa Horta

sexta-feira, outubro 13, 2006

Pusemos tanto azul nessa distância...


Vincent van Gogh


Pusemos tanto azul nessa distância
ancorada em incerta claridade
e ficámos nas paredes do vento
a escorrer para tudo o que ele invade.

Pusemos tantas flores nas horas breves
que secam folhas nas árvores dos dedos.

E ficámos cingidos nas estátuas
a morder-nos na carne dum segredo.



Natália Correia

quinta-feira, outubro 12, 2006

Sou doutras coisas...


Heather Jordan


Sou doutras coisas
fiz o meu barco com guitarras e com folhas
e com o vento fiz a vela que me leva
sou pescador de coisas belas, de emoções
sou a maré que sempre sobe e não sossega




Fernando Tordo

quarta-feira, outubro 11, 2006

O sonho é ver formas invisíveis...


Paul Cezanne


O sonho é ver formas invisíveis
Da distância imprecisa, e, com sensíveis
Movimentos da esperança e da vontade,
Buscar na linha fria do horizonte
A árvore, a praia, a flor, a ave, a fonte -
Os beijos merecidos da Verdade.


Fernando Pessoa

terça-feira, outubro 10, 2006

Não... não vou por aí!


Rembrandt van Rijn

Cântico Negro


"Vem por aqui" - dizem-me alguns com olhos doces,
Estendendo-me os braços, e seguros
De que seria bom se eu os ouvisse
Quando me dizem: "vem por aqui"!
Eu olho-os com olhos lassos,
(Há, nos meus olhos, ironias e cansaços)
E cruzo os braços,
E nunca vou por ali...

A minha glória é esta:
Criar desumanidade!
Não acompanhar ninguém.
- Que eu vivo com o mesmo sem-vontade
Com que rasguei o ventre a minha mãe.

Não, não vou por aí! Só vou por onde
Me levam meus próprios passos...

Se ao que busco saber nenhum de vós responde,
Por que me repetis: "vem por aqui"?
Prefiro escorregar nos becos lamacentos,
Redemoinhar aos ventos,
Como farrapos, arrastar os pés sangrentos,
A ir por aí...

Se vim ao mundo, foi
Só para desflorar florestas virgens,
E desenhar meus próprios pés na areia inexplorada!
O mais que faço não vale nada.

Como, pois, sereis vós
Que me dareis machados, ferramentas, e coragem
Para eu derrubar os meus obstáculos?...
Corre, nas vossas veias, sangue velho dos avós,
E vós amais o que é fácil!
Eu amo o Longe e a Miragem,
Amo os abismos, as torrentes, os desertos...

Ide! tendes estradas,
Tendes jardins, tendes canteiros,
Tendes pátrias, tendes tectos,
E tendes regras, e tratados, e filósofos, e sábios.
Eu tenho a minha Loucura!

Levanto-a, como um facho, a arder na noite escura,
E sinto espuma, e sangue, e cânticos nos lábios...

Deus e o Diabo é que me guiam, mais ninguém.
Todos tiveram pai, todos tiveram mãe;
Mas eu, que nunca principio nem acabo,
Nasci do amor que há entre Deus e o Diabo.

Ah, que ninguém me dê piedosas intenções!
Ninguém me peça definições!
Ninguém me diga: "vem por aqui"!
A minha vida é um vendaval que se soltou.
É uma onda que se alevantou.
É um átomo a mais que se animou...
Não sei por onde vou,
Não sei para onde vou,
- Sei que não vou por aí.




José Régio

domingo, outubro 08, 2006

Sous la lumière d'un ciel rosé...


Claude Monet


Sous la lumière d'un ciel rosé
la montagne encensait
le turquoise de l'horizon
projeté dans l'oeil
retourné au passé
sous l'épaisse couche de givre
quand le présent fait rage
sur l'âme rompue
au vif espoir
d'une lumière entrevue
à travers les silences
le bruit de mes pas
et le cri d'un oiseau



Huguette Bertrand

sexta-feira, outubro 06, 2006

Confiança


Vincent van Gogh

O que é bonito neste mundo, e anima,
É ver que na vindima
De cada sonho
Fica a cepa a sonhar outra aventura...
E que a doçura
Que se não prova
Se transfigura
Numa doçura
Muito mais pura
E muito mais nova...


Miguel Torga

domingo, outubro 01, 2006

De onde vieste, feiticeira?


Gustav Klimt


De que noite demorada
Ou de que breve manhã
Vieste tu, feiticeira
De nuvens deslumbrada

De que sonho feito mar
Ou de que mar não sonhado
Vieste tu, feiticeira
Aninhar-te ao meu lado

De que fogo renascido
Ou de que lume apagado
Vieste tu, feiticeira
Segredar-me ao ouvido

De que fontes de que águas
De que chão de que horizonte
De que neves de que fráguas
De que sedes de que montes
De que norte de que lida
De que deserto de morte
Vieste tu feiticeira
Inundar-me de vida


Música: Luís Represas
Letra: Francisco Viana
Interpretação: Luís Represas