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terça-feira, novembro 29, 2011

Estão podres as palavras

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... e não só
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Jean Veber


Estão podres as palavras - de passarem
por sórdidas mentiras de canalhas
que as usam ao revés como o carácter deles.
E podres de sonâmbulos os povos
ante a maldade à solta de que vivem
a paz quotidiana da injustiça.
Usá-las puras - como serão puras,
se caem no silêncio em que os mais puros
não sabem já onde a limpeza acaba
e a corrupção começa? Como serão puras
se logo a infâmia as cobre de seu cuspo?
Estão podres: e com elas apodrece o mundo
se dissolve em lama a criação do homem
que só persiste em todos livremente
onde as palavras fiquem como torres erguidas
sexo de homens entre o céu e a terra.


Jorge de Sena

quinta-feira, novembro 24, 2011

Alarme

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Simon Casson


Quem foi que anoiteceu a tarde em água e vento
e encheu de Inverno o Outono em que me escondo?
Quem foi que amarfanhou o meu sorriso antigo
e encheu de lama estrelas que sonhava?

Vontade de escarrar,
vontade louca
de dizer palavrões
a toda a gente!...
E tudo fica igual,
como se nada
tivesse acontecido
em qualquer parte;
e tudo fica mudo,
a mastigar
pra dentro
os palavrões
que era
preciso
dizer,
para que a tarde
fosse tarde
e o Outono
Outono
e o riso fosse riso
- um bimbalhar de sinos -
e as estrelas
brilhassem como sóis...

É preciso
acordar
a madrugada
- antes que a matem,
inda mal desperta!...


Alfredo Reguengo

quarta-feira, novembro 23, 2011

um porco há-de ser sempre um porco ... inda que o rei o faça cortesão

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O rei dos animais, o rugidor leão,
Com o porco engraçou, não sei por que razão.
Quis empregá-lo bem para tirar-lhe a sorna
(A quem torpe nasceu nenhum enfeite adorna):
Deu-lhe alta dignidade, e rendas competentes,
Poder de despachar os brutos pretendentes,
De reprimir os maus, fazer aos bons justiça,
E assim cuidou vencer-lhe a natural preguiça;
Mas em vão, porque o porco é bom só para assar,
E a sua ocupação dormir, comer, fossar.
Notando-lhe a ignorância, o desmazelo, a incúria,

Soltavam contra ele injúria sobre injúria
Os outros animais, dizendo-lhe com ira:
«Ora o que o berço dá, somente a cova o tira!»
E ele, apenas grunhindo a vilipêndios tais,
Ficava muito enxuto. Atenção nisto, ó pais!
Dos filhos para o génio olhai com madureza;
Não há poder algum que mude a natureza:
Um porco há-de ser porco, inda que o rei dos bichos
O faça cortesão pelos seus vãos caprichos.


Bocage, in 'Fábulas'

terça-feira, novembro 22, 2011

Cantiga do fogo e da guerra ou de como os "senhores" nos sugam até ao tutano

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Pieter Bruegel


Há um fogo enorme no jardim da guerra
E os homens semeiam fagulhas na terra
Os homens passeiam co´os pés no carvão
que os Deuses acendem luzindo um tição
Pra apagar o fogo vêm embaixadores
trazendo no peito água e extintores
Extinguem as vidas dos que caiem na rede
e dão água aos mortos que já não têm sede
Ao circo da guerra chegam piromagos
abrem grande a boca quando são bem pagos
soltam labaredas pela boca cariada
fogo que não arde nem queima nem nada
Senhores importantes fazem piqueniques
churrascam o frango no ardor dos despiques
Engolem sangria dos sangues fanados
E enxugam os beiços na pele dos queimados
É guerra de trapos no pulmão que cessa
do óleo cansado que arde depressa
Os homens maciços cavam-se por dentro
e o fogo penetra, vai directo ao centro


Letra: Sérgio Godinho
Música: José Mário Branco
Álbum: Mudam-se os tempos mudam-se as vontades

domingo, novembro 06, 2011

da janela da vida...

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Daniel Bueno


Para ver quanta fé perdida
E quanta miséria sem par
Há neste orbe, atroz ruim
Pus-me à janela da vida
E alonguei o meu olhar
P´lo vasto Mundo sem fim.

Pus todo o meu sentimento
Na mágoa que não se aparta
Do que mais nos desconsola;
E assim a cada momento
Vi buçaes comendo à farta
E génios pedindo esmola!

Vi muitas vezes a razão
Por muitos posta de rastos,
E a mentira em viva chama;
Até por triste irrisão,
Vi nulidades nos astros
E vi ciências na lama!...

Vi dar aos ladrões, valores,
Vi sentimentos perdidos
Nas que passam por honradas,
Vi cinismos vencedores,
Muitos heróis esquecidos
E vaidades medalhadas!

Vi, no torpor mais imundo,
Profundas crenças caindo
E maldições ascendendo;
Tudo vi, por esse mundo:
Vi miseráveis subindo
E homens honrados descendo!

Esse é rico, e não tem filhos
Que os filhos não dão prazer
A certa gente de bem.
Aquele tem duros trilhos
Mas é capaz de morrer
P´los filhinhos que tem!

Esta é rica em frases ledas,
Diz-se a mais casta donzela,
Mas a honra onde ela vai!…
Aquela não veste sedas,
Mas os garotitos dela,
São filhos do mesmo pai!

Por isso afirmo conciso,
Que p´ra na vida ter sorte,
Não basta a fé decidida;
P´ra ser feliz, é preciso
Ser canalha até à morte,
Ou não pensar mais na vida!


Letra de: Carlos Conde (1920)
Música e Interpretação: Alfredo Marceneiro